sábado, 14 de maio de 2011

Quando éramos órfãos

Foto: Após bomba do Japão sobre Xangai, em 1937.

"Quando éramos órfãos", de Kazuo Ishiguro - quem também escreveu "Vestígios do dia" e "Never let me go", romances que deram origem a filmes com os mesmos nomes - trata da busca de um detetive de origem inglesa que passou sua infância na Colônia Internacional, Xangai, na primeira metade do século. A busca é pelos seus pais, líderes da campanha anti-ópio, de quem foi separado por incidentes mal explicados, ainda quando criança.
Lembranças assomam e alinhavam o texto, em fulgores de uma escrita que comove pela palidez das impossibilidades de uma realização que esteja fora da fantasia e do desejo ingênuo de reencontrar a infância em um mundo em guerra.
Impossível largar o livro antes da última página.
Chineses, ingleses, japoneses na escola e no quintal - cercado por ópio, miséria, bares, assassinatos, hotéis, negócios (e mais tarde, a bomba japonesa sobre Xangai, anunciando a 2a. Guerra Mundial).
Um dos momentos brilhantes é quando o narrador Christopher (Puffin) conta como o enredo da brincadeira com seu amigo Akira mudou após o desaparecimento de seu pai. Com seu "chapa", o japonês Akira, divide os dramas de crianças estrangeiras que temem voltar aos seus países de origem.
Vale a leitura.

" Mas sempre que meu amigo sentia que eu estava preocupado, ou que minha cabeça estava noutra parte, dizia: “Meu chapa. Brincamos de resgatar pai”.
Nossas narrativas a respeito de meu pai tinham, como disse, infinitas variações, mas bem rápido estabelecemos um enredo básico recorrente. Meu pai era mantido em cativeiro numa casa nalgum lugar além dos limites da Colônia. Seus captores eram uma quadrilha com o intento de extorquir um vultoso resgate. Vários detalhes menores evoluíram muito rapidamente até virarem eles próprios parte da intriga. Sempre era o caso, por exemplo, que, a despeito de cercada pelos horrores do bairro chinês, a casa na qual se encontrava meu pai era confortável e limpa. De fato, ainda posso lembrar como essa convenção específica foi estabelecida. Era talvez a segunda ou terceira vez que ensaiávamos a brincadeira, e Akira e eu nos alternávamos no papel do lendário inspetor Kung - cujas elegantes feições e o chapéu usado à maneira dândi nós bem conhecíamos das fotografias de jornal. Estávamos bastante absortos nos entusiasmos de nossa fantasia, quando subitamente, na altura em que meu pai surgia pela primeira vez em nossa história, Akira fez um sinal para mim - indicando que eu devia representa-lo - e disse: “Você amarrado na cadeira”.
Estávamos a todo o vapor, mas então estaquei.
“Não”, eu disse. “O meu pai não está amarrado. Como é que ele pode estar amarrado o tempo todo?”
Akira, que jamais gostava de ser contrariado ao desenvolver uma narrativa, repetiu com impaciência que meu pai estava amarrado a uma cadeira e que eu devia imita-lo ao pé de uma árvore sem mais demora. Retruquei aos berros: “Não!”, e saí orgulhoso. Não deixei, contudo, o jardim de Akira. Lembro de postar-me no limite em que iniciava o gramado - onde terminava nossa “floresta” - e mirar com olhar vazio uma lagartixa subindo o tronco de um olmo. Depois de um instante, ouvi atrás de mim os passos de Akira e preparei-me para uma franca discussão. Mas, para surpresa minha, ao virar-me para ele, vi o meu amigo fitando-me com um olhar conciliador. Ele aproximou-se e disse brandamente:
“Você é certo. Pai não amarrado. Ele muito confortável. Casa seqüestradores confortável. Muito confortável”.
Depois disso era sempre Akira que tomava grande cuidado para assegurar o conforto e a dignidade de meu pai em todos os nossos dramas. Os seqüestradores sempre se dirigiam a ele como se fossem seus criados, levando-lhe comida, bebida e jornais tão logo ele os reclamasse. Assim sendo, o caráter dos seqüestradores também abrandou; resultou que não eram maus em absoluto, simplesmente homens com famílias famintas. Lamentavam sinceramente ter de tomar tão drástica atitude, explicavam a meu pai, mas não podiam suportar ver seus filhos morrerem de fome, mas o que mais podiam fazer? Haviam escolhido o Sr. Banks justamente porque sua simpatia pelas agruras dos chineses mais pobres era bem conhecida, e era possível que ele entendesse a inconveniência à qual o expunham. A isso, meu pai - a quem eu sempre representava - suspirava compreensivo, mas então ajuntava que, fossem quais fossem os dissabores da vida, o crime não podia ser tolerado. Além disso, era inevitável, o inspetor Kung cedo ou tarde chegaria com seus homens...”

Tradução José Marcos Macedo. Cia das Letras, 2000

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